sábado, 6 de maio de 2017

“13 RAZÕES PORQUE”: Precisamos falar sobre o suicídio


Há algumas semanas um(a) jovem paciente veio para sua consulta em meu consultório bastante impactado(a) com uma série que acabara de assistir. Chamou-me a atenção a maneira tão real ao qual narrou as cenas, mas também por contar o que assistiu como “óbvio” que sua terapeuta também havia assistido e que sabia da intensidade das cenas. Tratava-se de uma série em que uma moça havia entendido que só havia uma saída: o suicídio. Mas antes disso, deixou 13 fitas endereçadas àqueles que haviam sido as razões para tomada daquela decisão. 

Tenho pensado que em alguns contextos as séries têm ocupado um lugar que antigamente pertencia às novelas: a dramaturgia com grande alcance compondo o cotidiano e oferecendo ao social as questões a serem discutida nas “rodas de amigos”. Neste contexto, hoje o Não Palavra convida Yann Rodrigues, criador do interessantíssimo blog “Além do Roteiro” (CLIQUE AQUI). Yann escreve sobre temas da atualidade, dentre eles análises de séries.

Sabemos que a arte em suas mais variadas linguagens, muitas vezes age como estímulo projetivo, e assim não são raras as vezes em que um paciente chega para sua terapia impactado com uma música, uma poesia, uma imagem. Considerando o cinema como uma das linguagens da arte e as séries como uma de suas ramificações, penso que é essencial que o terapeuta esteja atento ao que há de mais atual estimulando o social neste seguimento.

Hoje tratamos de um tema extremamente atual, sobretudo porque, sincronicamente, no Brasil, vivemos o reaparecimento do jogo “Baleia Azul”. Assim, consideramos que este texto fala aos terapeutas de forma geral que se propõem a trabalhar com adolescentes (e outros públicos) que podem esbarrar no tema suicídio.
Bem vindo Yann e obrigada pela disponibilidade e generosidade de partilhar com o Não Palavra!
Eliana Moraes

Por Yann Rodrigues
"Oi, é a Hannah. Hannah Baker. Não ajuste seu… seja lá o que estiver usando para ouvir isso. Sou eu, ao vivo e em estéreo. Sem promessa de retorno, sem bis e, dessa vez, sem atender a pedidos. Pegue um lanche. Acomode-se. Porque eu vou contar a história da minha vida. Mais especificamente, por que minha vida terminou. E se você está ouvindo essa fita, você é um dos porquês."

Toda boa história tem dois elementos fortemente conectados e embutidos pela equipe que a produz. Uma promessa e uma ou mais visões de mundo.

A promessa vem do questionamento ou efeito que essa equipe deseja provocar. Seja a pessoa autora do livro "Os Treze Porquês", que dá origem à série "13 Reasons Why", da Netflix, seja pelas responsáveis por roteiro, direção e produção da última.

No seriado House of Cards, também da Netflix, a promessa vem na forma da primeira quebra de quarta parede da série. Acompanharemos um caminho de tomada inescrupulosa de poder, mas não como meros espectadores. Sentiremos o desconforto de sermos cúmplices.


Em "Os Treze Porquês", Hannah Baker é a jovem que, com um caminho extremamente sofrido, decide pelo suicídio. Escutamos as 13 fitas que ela grava, elencando as pessoas e razões que a levaram ao suicídio, através do co-protagonista da série, Clay. Ele é uma das razões.

Porém, não é com ele que escutamos o início da primeira fita. Assim como fiz na introdução do texto, a narração de Hannah é a primeira cena. "Seja lá o que estiver usando para ouvir isso" (o celular, o computador, a televisão ou videogame), o espectador é chamado para a narrativa como se fosse ele uma das razões.

Essa é a promessa da série: discutir o suicídio do ponto em que você, eu, qualquer espectador, pode ser uma razão para o ato. Um dos porquês. É o momento em que a série aciona o seu primeiro de muitos possíveis gatilhos: o desconforto de que podemos causar uma tragédia como o suicídio. Gatilho suficiente para nos fazer assistir até o final, ávidos a negar tal destino.

Embutida nessa promessa já temos clara uma visão de mundo. A de que há culpados para um suicídio.

Partindo da promessa, acompanhamos duas linhas narrativas junto a Clay. O presente, onde ele escuta as fitas e lida (junto ou contra os outros jovens) com as consequências, e o passado, à medida que Clay visita e lembra os locais e eventos narrados pela adolescente.

Em praticamente todos os episódios, alguém, seja Clay ou a "protagonista da fita", percebe um momento-chave em que "Se eu não tivesse feito X com ela, talvez ela estivesse aqui conosco".

É, talvez. Mas, à medida em que os eventos se desenrolam, fica claro que a visão de mundo envolvendo essa colocação não desenvolve a possibilidade de ajuda a alguém que precisa. Desenvolve apenas o "se", a tortura da culpa que sentem os que ficaram.


Poderia ficar uma dúvida, ao assistirmos à produção, se a mesma acredita que podemos contribuir para evitar um suicídio, ou se na verdade podemos apenas tentar não contribuir para causar um. Episódio a episódio na maratona Netflix, se fortalece a última opção, confirmando a primeira visão de mundo, embutida na promessa.

Além de lidar com o luto, vemos todos os envolvidos em estado de negação, desespero e até alucinações.



“Por que uma garota morta mentiria? / Você não conseguiu me salvar / Você é tão doce, certo? Errado / Você só quis ver se os rumores eram verdadeiros? / Como você vive com você mesma? / Você foi o começo do fim”

Alex, personagem da terceira fita, toma nota do dano que causou ao criar uma lista que objetificava sexualmente as colegas de escola. Seu caminho se torna uma espiral de ações em que perde o sentido da própria vida, até o ponto de também tentar o suicídio, no final do seriado.


Clay escuta sua fita transtornado pela ideia de que pode ter causado a morte de Hannah. Chega a perguntar a Tony, o melhor amigo e uma espécie de anjo da guarda do plano de Hannah (de distribuir as fitas para seus "alvos" ouvirem), se causara a sua morte.

Tony responde que sim — resposta que seria racionalizada pelo próprio depois com algo como "todos a matamos".

As 13 fitas são criadas traçando uma cronologia de como a garota enxergou chegar à decisão do suicídio. Elas passam por: uma foto vazada da garota com calcinha aparecendo; uma lista de nomes objetificando as garotas, que estremeceu duas amizades de Hannah; o medo de um stalker e uma foto de um beijo ocasional com outra menina; uma fofoca escolar sobre a sexualidade da protagonista devido à foto; uma tentativa abusiva de um garoto de ficar com Hannah acreditando que ela era fácil; um "castigo" de um garoto que retira os bilhetes amáveis que ela recebia diariamente (sem saber que eram de Clay); o vazamento deliberado por um colega de uma poesia extremamente íntima; um estupro à sua ex-amiga, a que Hannah assiste paralisada; a culpa pela morte de um colega no trânsito, com influência de uma placa de rua derrubada por sua amiga minutos antes, enquanto a dava carona; um segundo estupro, dessa vez sofrido por ela, pelo mesmo estuprador.


Se bateu cansaço ou aflição ao ler, imagine Hannah. Nenhum item pode ser chamado de mínimo, irrelevante. É evidente, no entanto, que há uma tentativa de crescimento do peso, do impacto esperado de cada evento, culminando nos estupros.

Por outro lado, cada episódio/fita dura o mesmo tempo, um episódio. O que aproxima as situações, dá um peso narrativo semelhante a elas.


Esse parelhamento é perigoso pois facilita que Jessica (que estremece a amizade na 2ª fita), Alex ou Clay se sintam tão culpados quanto Bryce, o estuprador — na verdade, eles se sentem muito mais culpados; Bryce não sente qualquer remorso.

Logo, facilita que quem se identifica com personagens como Jessica sintam medo de serem culpadas em suas vidas reais, como produto da identificação.


Os últimos episódios (entre 11 e 13) condensam essa narrativa da culpa de algumas formas:

1- Através da visão de Clay, somada às falas de Tony, que sobrepondo a própria posição de Hannah sobre o garoto. A fita de Clay o inocenta, mas ele, e todos, racionalizam a culpa.

2- Resultado? Clay quase se joga de um penhasco pensando no que poderia ter falado que poderia ter feito alguma diferença.

3- Através do caminho de Alex, o único envolvido no grupo que tentava afastar Clay das fitas que realmente reflete sobre o papel de cada um ali no suicídio de Hannah.

4- Na própria tentativa de suicídio de Alex, que se considera culpado não só por ridicularizar e afastar Hannah, como por perder Jessica como namorada, devido a um desejo de transar.

O reforço massivo da ideia de culpa em todos leva a uma lógica de que para Hannah, não há solução, não havia saída, que não o suicídio.


Essa suposição expõe mais duas visões de mundo: a de que o suicídio é a única saída para alguém na situação de Hannah; e a sinistra conclusão de que o suicídio funciona como vingança.

A forma mais evidente de captarmos a visão ou tese de autores de uma história é percebendo os diálogos, pensamentos e ações de suas personagens. No caso da série, três momentos são marcantes para termos essa conclusão.


Quando Clay confronta Jessica sobre o estupro que esta sofreu de Bryce, a menina responde desesperançosa: "você viu que Hannah pediu ajuda e não adiantou nada".

Frases como essa, que estabelecem uma ideia, podem ter duas razões: elas são a tese, ou necessárias para a comprovação da tese.


Por exemplo, se "13 Reasons Why" desejasse mostrar que vale a pena buscar ajuda, a frase seria perfeita como uma isca. Sua utilidade estaria em ser a hipótese a que o roteiro visa contradizer. Criar uma personagem ou um fluxo narrativo para uma personagem existente (Alex ou a própria Jessica seriam bons exemplos), em que uma pessoa busca ajuda pós-estupro ou pré-suicídio e a ajuda funciona. A frase inicial da menina estaria contraposta, revelando a intenção da história.

Seria uma prova de que a ajuda é, no mínimo, uma possibilidade. Porém, a série não contrapõe a frase de Jessica em nenhum momento. Mais forte que isso, como segundo elemento, a série mostra o próprio insucesso de Hannah na busca por ajuda, com o conselheiro da escola — que não tinha formação em psicologia ou outra área associada.


A ajuda não funciona, o que é possível na vida real. Contudo, a cena é a única demonstração de qualquer tentativa de pedido de ajuda. O contexto criado na narrativa, como a falta de formação do conselheiro, ou a ligação que o impede de ir atrás de Hannah após esta sair de sua sala, são escolhas narrativas que servem para permitir que ela cometa o ato, que a história siga para onde deseja.

Mais uma vez, tudo possível, mas e as alternativas?

Como terceiro momento, há uma cena de relance com Tyler, o stalker.


A cena mostra Tyler guardando um baú de armamentos para que os pais não vejam. O stalker que é isolado e considerado uma aberração planeja um tiroteio escolar, o famoso "mass shooting" americano. Em seguida, aparece seu estúdio de fotografia com fotos de seus alvos. São praticamente as mesmas personagens que já conhecemos, incluindo Clay. Basicamente, a garota que sofreu todo tipo de bullying à coisa pior se suicidou. O garoto que sofreu todo tipo de bullying planeja um suicídio - com extra de assassinato em massa.

Considerações Finais:



Conhecendo as visões de mundo expostas na série, e a forma como ela fisga seus espectadores, fica evidente a importância de trabalhá-la. Para mim, alguém sem histórico depressivo ou de pensamentos suicidas, houve muito aprendizado sobre a situação. Para muita gente, ficaram os perigosos gatilhos. Em especial com a força do último episódio, que mostra a cena de suicídio de forma explícita. A cena chega a ensinar, além de ser graficamente impactante.

Alguns textos traçam perfis das personagens (CLIQUE AQUI), outros revelam o que sente quem está suscetível aos gatilhos (CLIQUE AQUI). Uma mãe escreveu (em inglês) sobre o efeito imediato da série em seu filho (CLIQUE AQUI) suscetível aos gatilhos.


Mesmo que a série não tenha continuação (duvido) e caia no esquecimento, é perigoso perdermos a oportunidade que o assunto apresenta. Todas essas discussões partem de uma narrativa onde ninguém, ninguém sai ileso. Uma narrativa onde não há saída além do suicídio.



Caso você tenha se identificado com a proposta do “Não palavra abre as portas” e se sinta motivado a aceitar o nosso convite, escreva para naopalavra@gmail.com
Assim poderemos iniciar nosso contato para maiores esclarecimentos quanto à proposta, ao formato do texto e quem sabe para um amadurecimento da sua ideia.

A Equipe Não Palavra te aguarda!

2 comentários:

  1. Assisti a série devido a disseminação do jogo Baleia Azul, para poder ajudar meu filho, caso algum desses tipos de desafios se apresentassem a ele, que está no ápice da adolescência, período de incertezas e crises existenciais pelo qual a maioria deles passa.

    É preciso observar que as análises sobre a série, feitas ,com maestria, por Yann Rodrigues, são sobre uma obra de ficção, a qual poderia ter sido conduzida a um final de salvação, se assim quisessem seus criadores.

    Isto posto, gostaria de questionar se não estamos dando valor demais às obras de ficção e nos deixando conduzir por elas. Se os diretores tivessem optado por resgatar Hannah Baker, isso não poderia trazer uma luz de esperança àqueles que sofrem de depressão, em estágios menos profundos. Questiono qual benefício a humanidade colhe ao deixar tanta tristeza entrar por suas mentes. Estaríamos entrando numa fase de "possibilitismo", nos transformando em algo que não queremos, por aceitar, ainda que subconscientemente, os desfechos apresentados por outros?

    Até quando a maioria esmagadora das pessoas continuará reduzindo a velocidade dos veículos, para observar um acidente, sem a menor intenção de auxiliar, mas exclusivamente com o puro desejo de ver a tragédia e, não tirarem o pé do acelerador, ao passarem por uma linda vista?

    Na medida em que nos permitamos ser "engatilhados" por obras de ficção, podemos estar deixando de nos desenvolver humanamente, fazendo nossas as reflexões de outros. A humanidade tem uma atração inexplicável pela dor e, de tanto a vermos e convivermos com ela, até, sem perceber, deixarmos que ela domine nossos corações e mentes. Opostamente, será que se víssemos mais comédias, mais romances, seríamos mais alegres? Até que ponto somos o que comemos? Até que ponto sabemos se estamos comendo o que devemos ou precisamos comer? Quem pode determinar o que nos faz bem ou mal, em momentos de crise, seja qual for a idade? Uma coisa parece constante: quando menor o nível de compreensão de uma pessoa, mais suscetível ela pode estar a estímulos negativos, lembrando, em relação a isto, que muitos de nós já fizemos o bem para determinada pessoa por longo tempo e, no momento em que incorremos em um erro, todos os atos bons são simplesmente esquecidos. Sugiro uma pesquisa sobre quantas comédias e filmes de violência são lançados anualmente e suas respectivas bilheterias.

    Devemos falar sobre depressão. Aliás, mais que falar, procurar entender!! Para então tentarmos ajudar. Devemos disseminar alegria e Amor.

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  2. Obrigado pelo comentário, meu amigo. Esse questionamento, do quanto nos deixamos influenciar, compõe minha motivação de adentrar as técnicas de narrativa e entender o que estão dizendo as autoras e autores das histórias. Como você bem disse, são obras de ficção, que podem ter outros caminhos se assim quisessem seus criadores.

    Vejo muitos comentários em rodas e internet por aí tratando obras de ficção como reflexos objetivos e perfeitos da realidade. Como se até documentários não estivessem sujeitos a vieses, pontos de vista, subjetividades.

    Assino embaixo de seu último parágrafo. Grande abraço e bons ventos!

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